O gênero humano encontra-se hoje em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro. Elas são provocadas pela inteligência do homem e por sua atividade criadora e atingem o próprio homem, seus juízos, seus desejos individuais e coletivos, seu modo de pensar e agir tanto em relação as coisas quanto em relação aos homens. Já podemos falar então de uma verdadeira transformação social e cultural, que repercute na própria vida religiosa (CONCÍLIO VATICANO II, Gaudium et Spes, n. 206)
Como afirma o documento Gaudium et Spes, publicado pelo Concílio Vaticano II, nos encontramos diante de um mundo em profunda transformação social. As sociedades pós-modernas são muito complexas. Essa complexidade trás inúmeros desafios, sobretudo, aqueles relacionados com as escolhas morais. A própria teologia moral enquanto ciência prática encontra-se diante de muitos e grandes desafios. A liberdade dos comportamentos, as muitas opções, o consumo desenfreado têm deixado as pessoas atônitas e perplexas. Muitos se perdem em escolhas morais mal formuladas. Não é fácil viver neste mundo, são muitas as dificuldades, crises, perda de sentido, inversão de valores. As notícias que vemos todos os dias nos meios de comunicação de massa nos deixam confusos. Nesse ambiente social, encontra-se a questão da formulação de uma “Teologia da Prevenção” no contexto da iminência de um vírus que ainda mata. Como a teologia moral, enquanto ciência prática, pode contribuir com uma educação que realmente promova a prevenção diante da realidade da AIDS? Trata-se de uma pergunta instigante que interfere no labor teológico de muitos teólogos moralistas. Os primeiros casos do vírus HIV já estão completando 30 anos, e o vírus continua a se alastrar. Em todos os continentes, o avanço vai se dando de forma lenta e cruel. Sobretudo, o continente africano tem encontrado muitas dificuldades. A realidade africana tem demonstrado que a pobreza econômica e social tem se constituído num dos elementos mais nocivos para a expansão do vírus.
O Brasil com seus 600 mil portadores tem se colocado numa posição de vanguarda, uma vez que tem conseguido tratar dos que estão com o vírus e ao mesmo tempo propor políticas públicas que impeçam que esse número avance. As políticas públicas de prevenção, as campanhas publicitárias no período do carnaval, as discussões nas escolas e com a sociedade civil têm encontrado uma eficácia plausível. Para nós cristãos, resta o desafio de construir uma teologia que vá ao encontro dessas políticas que norteiam a vida dos cidadãos. Temos uma especificidade cristã que nos faz pautar pelas orientações da Sagrada Escritura, Tradição e Magistério. Pautamos nossa política educativa no diálogo formador e enriquecedor que traz liberdade nas escolhas e responsabilidade nas ações morais. No contexto da sociedade pós-moderna, a razão prática, enquanto capacidade para decidir, deve orientar nossa conduta humana. Num mundo cheio de possibilidades, as escolhas morais devem ser bem analisadas, pautadas com rigor e disciplina. As pessoas não podem se deixar influenciar pelas propagandas da sociedade de consumo. É preciso desenvolver sempre mais a consciência crítica. Bernard Haring dizia que a formação da capacidade crítica era a grande virtude dos tempos modernos. Crítica em sentido de capacidade de análise, discernimento dos valores morais em questão, escolhas corretas.
A teologia da prevenção no contexto da AIDS entende que toda ação moral deve ser pautada pela responsabilidade da ação. A noção de sexo seguro, por exemplo, deve ser objeto de discussão livre entre pais e filhos, marido e esposa, alunos e professores. Todo sexo deve ser seguro, não pode existir sexo “inseguro” ou “desprotegido”. A noção de sexo seguro começa logo no conhecimento entre as pessoas. Você não pode “ficar”, beijar, namorar uma pessoa sem conhecê-la profundamente. Dias atrás brincava com meus alunos da Faculdade de Administração da PUC-Campinas dizendo que eles deveriam pedir a seus namorados/as exame de sangue, uma vez que eles podem não conhecer a história da pessoa que esteja ao lado deles. Ela pode estar mentindo para o parceiro. Eles deram risada, mas eu insisti no fato. Um marido não pode mais “confiar” cegamente em sua esposa e vice-versa, uma menina não pode mais “confiar” cegamente em seu namorado.
Aumentam os casos de AIDS entre adolescentes, mulheres casadas e idosos. É preciso atenção, uma atenção vigiada. Então, não podemos confiar em mais ninguém? Penso que não é bem assim: devemos confiar desconfiando. Prevenção implica atenção sempre e constante. Em relação a AIDS, a moral cristã defende a castidade (solteiros) fidelidade (casados) e “sexo seguro” para pessoas que não conseguem viver segundo as orientações da moral cristã. A teologia moral defende a moral da vida, e em muitos casos preservar a sua vida e a dos outros é uma realidade social que a felicidade conjugal exige. No contexto da pós-modernidade, seria muito importante que as pessoas fossem honestas, transparentes e livres, construindo na base do respeito e da solidariedade relacionamentos fortes e duradouros. Mas, como bem sabemos, quantos maridos e esposas traem seus cônjuges e não são honestos quando retornam para suas casas. Quando se deitam no leito do amor e no aconchego da noite camuflam a verdade vivendo uma mentira sem o menor constrangimento. E, do mesmo modo, quantos namorados, conhecidos ou amantes se comportam de uma forma egoísta, escondendo a verdadeira prática sexual. Como as relações normalmente não são transparentes é preciso muita atenção.
Diante do novo milênio, a questão para nós como Igreja é: quais aspectos de nossa vida e de nossa doutrina precisam mudar para que nos tornemos realmente um sinal mais eficaz e instrumento de cura para toda a nossa família humana infectada pela AIDS? Essa questão envolve a práxis de todo teólogo moralista, uma vez que a AIDS é uma questão vinculada ao comportamento, e ao mesmo tempo todo o trabalho educativo de todos os grupos de pastoral que direta e indiretamente se relacionam com o Povo de Deus em nossas muitas comunidades cristãs. A questão da prevenção da AIDS é um desafio para todos os agentes de pastoral, sejam eles internos sejam externos à práxis eclesial. É preciso uma nova mentalidade e uma nova atitude comportamental que se libertem dos preconceitos que ainda matam. O vírus da AIDS está associado ao vírus da ignorância, da injustiça social, da injustiça de gênero, da opressão racial, étnica e cultural. Ainda hoje muitos cristãos morrem em decorrência da AIDS, mas o vírus da ignorância nos torna silenciosos e egoístas, criando uma cortina de subserviência que destrói qualquer forma de solidariedade.
Nesse sentido, é preciso valorizar o trabalho da “Pastoral da AIDS”, vinculada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, coordenada pelos frades capuchinhos. Tive o prazer de conhecer um pouco desse trabalho e sei da sua grande importância para o povo brasileiro. A Pastoral da AIDS é um serviço da Igreja católica neste campo profundamente desafiante. Além de todo o trabalho educativo da prevenção, são desenvolvidas ações de capacitação de agentes de pastoral e fortalecimento da espiritualidade cristã. Além desse trabalho, existem muitas outras experiências, tais como casas de acolhimento, ações educativas em muitas comunidades tendo em vista a prevenção, o acolhimento e o combate ao preconceito que vitima. Infelizmente, desde o início, a AIDS foi estigmatizada e ainda podemos observar um grande preconceito contra quem se descobre com HIV, implicando inclusive morte social. Os cristãos bem como as comunidades cristãs espalhadas por este Brasil afora precisam cumprir a sua tarefa de educadores e dar o seu exemplo de abertura, diálogo e promoção da responsabilidade comportamental perante uma sociedade indiferente e mercantilista. Não podemos esquecer outras organizações sociais vinculadas direta ou indiretamente ao Ministério da Saúde que também realizam ações importantes no contexto da prevenção. Em meu livro “CNBB, AIDS e Governo”, publicado pela editora Átomo em 2005, defendo a necessidade do diálogo fraternal entre o governo e todas as instituições religiosas que combatem esse vírus. Apesar de algumas práticas serem diferentes, o objetivo é o mesmo, ou seja, controlar a epidemia.
Recentemente em minha comunidade paroquial, morreu o pai de uma pessoa engajada na catequese, e as pessoas comentaram em “voz baixa” que ele tinha morrido de AIDS. Foi um silêncio total, pavor e medo até de mencionar o nome AIDS. Presidi a cerimônia de casamento de uma amiga, estudante e depois professora na Unicamp, que se descobriu com o vírus da AIDS, fruto de um relacionamento antigo. Quando ela descobriu que era soropositiva, ficou muito triste, seu marido ficou perplexo, entretanto, superaram essa fase e hoje eles têm um filho o qual criam com amor e carinho. Mas, no início, ela tinha até receio de ir buscar o medicamento na prefeitura, temendo encontrar algum aluno que descobrisse que ela era soropositiva. Eu disse a ela para perder esse medo e tratar normalmente a questão e ajudar a educar as pessoas para que o vírus da ignorância fosse eliminado. Uma das coordenadoras de uma das comunidades que compõem a paróquia onde sou pároco é portadora do vírus HIV há muito tempo. Penso que sua família saiba, mas trata a questão com discrição. Sempre que solicito, ela oferece seu testemunho de cristã e ao mesmo tempo soropositiva. Ela afirma constantemente que só consegue viver graças ao amor infinito de Deus que a ama sem julgamentos. Deus realmente não faz discriminação de pessoas. Ama a todos com um coração grande e misericordioso. Converso sempre com ela, mas não é fácil, pois a luta contra o preconceito é muito grande. Espero que, num futuro próximo, ela e outros que conheço possam efetivamente falar abertamente sobre suas vidas no sentido de favorecer uma educação mais profícua para o nosso povo. É preciso manter, incentivar e fortalecer a militância das pessoas que vivem e convivem com HIV/AIDS. Infelizmente, ainda tratamos o tema com certo medo, pudor e vergonha. Estamos no século XXI, vivemos em clima de alta tecnologia e grandes avanços na ciência, mas ainda convivemos com um vírus que mata. Enquanto continuarmos tratando este tema com descaso, medo e preconceito, ele continuará matando, pois esse vírus só será destruído quando a sociedade deixar de ser hipócrita.
Nós teólogos moralistas temos a obrigação de trabalhar em prol de uma teologia moral positiva que motive as pessoas a pensarem seriamente sobre a qualidade de seus relacionamentos. Uma época de AIDS não é uma época para ficar quietos. É preciso a irreverência de um menino para que nossa ética sexual seja ampla, atraente e que ao mesmo tempo motive as pessoas para uma vida mais saudável e fraterna. Os relacionamentos interesseiros, sem compromisso, casuais devem ser transformados em relacionamentos sérios, comprometidos, honestos e transparentes. A doutrina social da Igreja possui um conteúdo bastante amplo, deve penetrar na alma dos seres humanos e criticar toda forma de laxismo reducionista e relativista. A sexualidade humana deve ser encarada de forma positiva, centrada na pessoa enquanto valor supremo, permanecer fiel ao mandamento divino do “amai-vos uns aos outros” e ao mesmo tempo deve responder criticamente às necessidades do mundo moderno.
É preciso perder o receio, a vergonha e começarmos a pescar em águas mais profundas. O trabalho de acolhimento e prevenção no contexto da AIDS é uma necessidade que os sinais dos tempos nos impõem e que o Evangelho de Jesus nos convoca. A paixão que encontramos no enfrentamento deste polêmico tema nos remete a um sentido positivo. Afinal, a sexualidade é uma área do nosso ser que pulsa de uma forma muito forte. Somos apaixonados, e a vivência dessa paixão, se não for bem regrada pela razão, pode nos destruir. A sexualidade é como entrar no mar. É preciso sabedoria, conhecimento, domínio das paixões, razão crítica, senão a gente se afoga, se perde e morre. Trata-se então de uma questão de responsabilidade pessoal vivida na liberdade dos filhos de Deus. A consciência moral bem formulada, no contexto da pós-modernidade, é uma exigência que começa na família. O diálogo e a formação de pessoas humanas críticas, com capacidade de discernimento para o correto agir em nossa sociedade, devem ser a meta de toda tarefa educacional. Não podemos mais ignorar a sexualidade, tratá-la com desleixo, ignorância e medo. A vergonha moral deve ser banida do nosso meio. O diálogo responsável, maduro, educativo deve ser norma na família, na Igreja, nas escolas ou em qualquer ambiente social.
É bom deixar claro que a moral das obrigações, do casuísmo rigorista e do fundamentalismo vazio não responde mais às exigências da sociedade pós-moderna. A sociedade pós-moderna exige pessoas maduras, dialogáveis, bem formadas, com capacidade de discernimento moral, que saibam fazer suas próprias escolhas e assumir suas responsabilidades. Portanto, a chave para a vida em abundância e saudável não é a obediência cega a normas morais oriundas de quem quer que seja, mas a própria consciência, enquanto sacrário, lugar da graça e do amor de Deus. No mundo de hoje, cada pessoa é chamada a fazer suas escolhas, no silêncio da noite e no uso correto e sincero da razão.
Neste sentido, compreendemos que a paixão refletida na fala e na vida de muitas pessoas, sobretudo, das que estão diretamente ligadas ao trabalho com soropositivos, deve ser entendida como um profundo compadecimento frente à dor do semelhante. Paixão que nos impede a passividade e nos convoca à ação. A “Teologia da Prevenção”, tal como estamos tentando construir, é na verdade, uma ação moral, gerada por uma compaixão, em sentido teológico. Segundo Jon Sobrino, toda teologia, para ser realmente teologia, precisa se tornar também Intellectus misericordiae. Mais do que emoções, precisamos de ações morais dirigidas pela razão, tendo em vista o correto discernimento frente às novas ordens morais que a pós-modernidade nos coloca em contato. Uma boa educação, baseada no correto conhecimento da sexualidade, sem as paixões que cegam, sem os fundamentalismos que falsificam a realidade, é uma necessidade para o nosso tempo.
Mais do que a polêmica em torno do uso ou não da camisinha, o Magistério Oficial da Igreja católica é a favor de uma sexualidade sadia, vivida no contexto de relações de amor que tornam as pessoas felizes do jeito que o criador as modelou. O uso do preservativo em determinados casos, sob determinadas circunstâncias e condicionamento, é descrito atualmente como algo que preserva a vida, e não como algo que a evita, como pró-vida, e não como antivida. Penso que hoje existe certo consenso entre pessoas e instituições que trabalham no combate a AIDS de que reduzir a discussão da necessária prevenção ao uso ou não do preservativo é um falso problema. O mesmo vale se ele é eficiente ou não. Trata-se então de colocar a questão central inspirada na ação pedagógica de Jesus do cuidado total com a vida. Uma ética do cuidado e um cuidado com a ética deve ser a nossa inspiração básica. A Igreja católica entende que, em alguns casos, o uso do preservativo pode se tornar, inclusive, uma obrigação moral.
Entretanto, sabemos que cada caso é um caso, e os nossos educadores morais deverão saber orientar as pessoas do melhor modo possível. A moral casuística de cunho maniqueísta, centrada no pode ou não pode, não responde mais às exigências do mundo atual. As sociedades pós-modernas exigem pessoas críticas, maduras, autônomas, com capacidade para raciocinar e decidir por si mesmas. Não precisamos mais de tutores. Precisamos de pessoas esclarecidas, e não de robôs que seguem cegamente opiniões de padres, agentes de pastorais, professores e tantos outros que fingem saber o que não sabem. Basta de falsas explicações e hipocrisia. A formação da consciência moral implica a capacidade de tomar decisões morais utilizando a própria experiência e saber racional. A autonomia da consciência moral, enquanto capacidade para tomar decisões e se responsabilizar por elas, é uma exigência que a sociedade atual impõe a todo cidadão cristão ou não.
A ética sexual no contexto atual deve tocar nossos mais profundos desejos. Deve nos ajudar a sermos livres, criadores do outro e de nós mesmos, a estarmos em harmonia com nossos corpos ajudando-nos a crescer como pessoas amadas e amantes, cujo amor nos transforma em seres livres e libertários para o respeito mútuo e o compromisso social. A ética sexual atual deve nos colocar em contato conosco para que nos libertemos de qualquer sistema de opressão ou de coação. Essa ética é livre ou não é nada. A confiança mútua, o respeito e a sinceridade no cotidiano das nossas vidas devem fluir como um rio que corre lentamente. A felicidade sexual passa pelo respeito ao companheiro/a, pela sensibilidade do amor feito generosidade. Mais do que a orientação sexual revelada pela história de cada pessoa, está o abraço de Deus que nos chama a uma vida repleta de alegrias. A sexualidade é um dom de Deus. Somos seres sexuados, e o exercício da nossa sexualidade nos faz irmãos e irmãs com a mesma dignidade, independentemente da nossa identidade sexual.
Por Pe. José Trasferetti
* Doutor em Teologia e Filosofia. Presidente da Sociedade Brasileira de Teologia Moral – SBTM (2003-2009). Coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia: PUC-Campinas (2004-2007). Diretor da Faculdade de Filosofia da PUC-Campinas (2006-2010). Editor da Revista Phrónesis (2004-2007). Professor titular da PUC-Campinas. Idealizador da Pastoral com homossexuais e autor de vários livros.